21 de fevereiro de 2008

Estou sentada num canto do quarto, embrulhada em palavras. Ouço a chuva cair lá fora com tanta força que me arrepia. Vou até à varanda. Encosto o meu nariz à janela sarapintada pela água e ali me deixo ficar, até que o calor da minha respiração embacie os vidros de tal forma que os meus olhos vejam apenas uma densa névoa, e os meus dedos não resistam a rabiscar as coisas mais bizarras e irreais por todo o vidro.
Uma gaivota pousa na chaminé do prédio da frente. Fixo os meus olhos nos seus movimentos. Quase não se move, parece gostar da chuva. Além do cheiro a terra molhada que o trecho aberto da janela deixa entrar, sinto o teu cheiro, vindo não-sei-bem-de-onde. Fecho os olhos para o conseguir sentir melhor.
Já não chove. Os meus olhos continuam fixos na gaivota pousada na chaminé. Por momentos assusto-me. Sob ela já não existe o prédio azul e branco plantado em frente do meu. Existe agora uma casinha rasteira, feita de pedacinhos de tecido. Esboço um suspiro de alívio, quando nos vejo. Eu e tu ou tu e eu, como queiras.
Era a nossa casa. Vivíamos num mundo feito por nós. Tu imaginavas, e eu fazia. Utilizava os mais variados materiais para fazer qualquer coisa. E tu imaginavas qualquer coisa a todo o momento. Mesmo até enquanto dormias.
Fizemos a nossa casa, e tudo o que nela morava: os cortinados, os tapetes, as mantas, o telefone, os talheres e os pratos. Fazíamos a nossa roupa e a cor dos nossos cabelos dependia da temperatura lá fora. Não tínhamos mobília nem espelhos.
Consegui convencer-te a imaginares um gato sem pêlo e que não gostasse de perseguir passarinhos. Imaginaste-o em algodão, pintado de preto, com dois grandes botões azuis no lugar dos olhos e esparguete como fonte de equilíbrio. Eu dei-lhe um nome e tu vida. Depois quis fazer-te uma surpresa: um canário. Fi-lo com papel colorido em origami, como tu me ensinaste. Só não soube dar-lhe vida. Só tu tinhas essa magia, de dar vida às coisas.

Tinhas começado a imaginar personagens, todas elas com características únicas. Imaginavas xilofones que falavam, peixinhos encantados, anões coloridos e bruxas más. Também imaginavas pessoas. Pessoas com pernas demasiado compridas, ou com uma cabeça demasiado grande, com uma mão maior que outra ou quase sem polegar. Imaginavas as pessoas todas sem coração. Eu perguntava-te porquê e tu dizias-me que as pessoas eram más. Eu fazia as tuas personagens tal-e-qual como tu as imaginavas e tu pedias-me que lhes desse nomes. Era uma tarefa fácil: bastava olhar uns segundos para elas e concentrar-me na informação que os meus olhos transmitiam à minha cabeça. E depois, ao tratá-las pelo nome, conseguía perceber porque se chamavam assim e não de outra-forma-qualquer, como acontecia com a maioria dos objectos (porque é que o lápis se chama lápis e não nuvem?). Depois imaginavas histórias, que batias nas teclas de sabão da maquina de escrever, com medo de te esqueceres de algum pormenor importante. Inventavas passados e presentes, cruzavas vidas e histórias. Quando gostavas do resultado, corrias e ias buscar a tua câmara de filmar à prateleira dos objectos de plasticina. E ali mesmo fazias um filme, que me fazia rir, ou chorar, ou ter medo. E eu gostava sempre mais dos que me faziam saborear o sal líquido dos meus olhos.
Já cansados, sentávamo-nos no nosso cantinho aconchegado por mantas e almofadas e punhamo-lO a cantar para nós, no gira-discos de madeira, pintado a vermelho. Eu bebia um chá, tu um café. Não o acabavas sem acender um cigarro. Não me cansava de falar de como te faziam mal, no meu discurso demasiado saudável e assertivo. Davas-me um beijo na testa. Os meus olhos faziam-se o mais zangados que conseguíam (não era fácil). Às vezes corria atrás de ti para to tirar, mas tu escapavas-me sempre.
Pedias-me que te tocasse uma melodia no nosso piano,
feito com os pacotes do açúcar que nos adoçava os dias. Às vezes improvisava, outras, mesmo sem eu querer, os meus dedos rodopiavam numa dança mecânica, produzindo os sons exactos da flauta mágica. Nunca te cansavas de a ouvir, e pedias-me sempre que repetisse. Quando via que abrias demasiado a boca e fechavas demasiado os olhos, os meus dedos despediam-se das leves teclas do piano e os meus pés caminhavam na tua direcção. Enroscávamo-nos um no outro, e eu fazia-te festas no cabelo.
Os vidros estão demasiado embaciados para que eu consiga ver o que se passa lá fora. Desenterro a minha cabeça da janela e limpo o nariz frio com a manga da camisola.
Os meus olhos continuam fixos na gaivota pousada na chaminé.
A chuva continua a cair lá fora.

11 comentários:

Marta disse...

Eu gosto muito de ti. Mesmo.

Beijos nas maminhas^^

Rita disse...

consegui imaginar tudo, e é tudo tão ternurento... deixaste-me com um sorriso no coração, Ana.
é a coisa mais bonita que li nos últimos tempos.

*

Stranger disse...

peço-me que guarde a caixinha da flauta mágica. assim, o som fica intacto. para sempre. até ao dia em que os teus dedos rodopiem no nosso piano e a toques exactamente como a ouvimos, agora.

vamos fazer todos os origamis que quisermos. ter os bonecos feitos de pano. e fazê-los mexer. como uma floresta dentro de um barco a boiar num lago de papel celofane.

festas no cabelo *

(espero que O volte a ouvir.)

Lenin aka JR disse...

Perdi-me... algures lá atrás.
Acho que devia ter virado à direita naquela esquina sombria. Em vez disso acabei por chegar a este cantinho. E ainda bem que me perdi... porque acabamos sempre por encontrar algo de interessante quando nos perdemos.

Gostei do texto. Deste e dos outros. Prometo que vou voltar... para ler e comentar.

Beijinhos,
João

PS.: Quando for grande também quero escrever assim... como tu.

Pedro Custódio disse...

Wow! E não é que consegui ler tudo? E não é que o li sem qualquer esforço? E não é que a cada palavra a curiosidade de saber o que vinha era maior? E não é que gostei? E não é que gostei mesmo?

É que eu gosto de ti, mas sei disfarçar bem! ^^

P.

Marta disse...

Foda-se Pedro, que mariquice. Vê-lá se fazes comentários destes no meu blog? Tss, tss...

Pedro Custódio disse...

Eu sei, fui demasiado simpatico. Mas olha, é a vida!

Pedro Custódio disse...

e tu, vê lá se me dás beijinhos nas maninhas? ah pois é.. tss tss

Marta disse...

Não seja por isso!

Pedro Custódio disse...

9?.. bitch

10

Daniel C. disse...

fucking brilliant...

Este é o meu comentário depois de meses de ausência a todo e qualquer blog, mas se quebro agora o silêncio não me arrependo porque este é o melhor quadro que vi este ano...

e chamo-lhe quadro com muita verdade, porque o que fizeste aqui foi pintar com palavras uma tela tridimensional... explodiste a minha imaginação.

Está brilhante.
Como tu sabes ser.

*