24 de outubro de 2008


"Por exemplo, se vieres às quatro horas, às três, já eu começo a estar feliz."



Saint-Exupé
ry, O Principezinho

21 de outubro de 2008

Não sejas plasticina.

Não sejas plasticina, sussurrou-me ele ao ouvido, na sua voz trágico-doce. E estas palavras, tão vazias e, ao mesmo tempo, tão cheias, foram ecoando dentro da minha cabeça até hoje.

Não sejas plasticina!


Não sejas plasticina!

Não sejas plasticina!


Não sejas plasticina!


Não sejas plasticina!



Não, eu nunca vou ser plasticina.

9 de outubro de 2008

Estique o joelho! Ombros para baixo! Calcanhar para o chão! Ombros para baixo! Estique o joelho! Amanhã deve chover. Tem chovido muito no resto do país. Até já houve inundações em Coimbra e no Porto. Na minha cabeça também. Ãh? Na minha cabeça também houve uma inundação. Uma grande inundação. Agora todos os pedacinhos pensantes estão a boiar lá dentro. Como numa sopa? Sim, como numa daquelas sopas medonhas das cantinas das escolas. Água e legumes a boiar. Legumes? Abóboras, feijões, cenouras, espinafres, batatas. Que baralhação de legumes! E eu que o diga, que os sinto tão bem cá dentro. Roliços pedaços de legumes a boiar na água que inundou a minha minúscula cabeça.

28 de setembro de 2008


Mais uma voltinha no carrossel dos esquisitos.


Cuidado para não enjoar!

25 de agosto de 2008

Gira que gira e torna a girar.

Um passo. Depois outro. Assim iam, calmamente, os frágeis pés tacteando o cheiro doce da calçada. As pedras, já gastas, que trajavam a terra nua da vila, viam-se embrulhadas em pedaços frescos de verde, que, sem saberem, as tornavam cheias de vida. Distraída, quis saber que sapatos trazia. Tinham passado muitas horas desde que os calçara (e a cabeça, essa, nunca deu para muito). Inclinou mecanicamente a cabeça sobre o tronco curvo, e, surpreendida, avistou pelo menos uma dúzia de caracóis dormitando nos pedaços de verde que davam vida às pedras da calçada. Agachou-se, para ver melhor e apercebeu-se que muitos deles não podiam estar a descansar, moviam-se tão lentamente, que o seu movimento se confundia com o leve oscilar das suas conchas nos dias de muito vento. Assustada com a ideia de que poderia ter pisado metade daqueles animais, caso continuasse caminho sem ligar aos sapatos, pegou, delicadamente, naquele que se encontrava mais ao seu alcance, que, ao sentir o calor dos seus dedos enrugados, logo se mergulhou no conforto espiralado da sua concha, e pousou-o sob as folhas das flores coloridas que se plantaram à beira da calçada. Assim foi passando o tempo, enternecendo-se com os diversos padrões de todas aquelas conchas. Manchas amarelas, riscas pretas, pequenas bolas esverdeadas, ziguezagues em tons castanhos, a variedade era muita. Pousava-os sempre na margem de lá, não fosse esse o grande sonho dos pequenos animais, e murmurava para os mais teimosos : 'Despega-te daí, que ainda és esmigalhado por algum pé apressado!'.
O senhor João observava, encantado, a vila do cimo do seu terraço, quando reparou no que se passava na viela do lado.
- Maria!, Maria! O que andas a fazer? - gritou.
A Dona Maria, surpreendida com tanta gritaria, olhou, com os maiores olhos que tinha, para cima da sua cabeça, e ao ver o senhor João naquela euforia, disse, calmamente:
- Estou a tirar os caracóis do meio da rua, para que ninguém os pise.
- Deixa lá os caracóis, tens que vir cá acima ver isto!
- Isto o quê?
- A vila vista daqui parece um jogo de blocos, daqueles que fazíamos quando éramos pequenos!
- João, tu sabes bem que a minha dor na perna não me deixa subir escadas.
- Faz um esforço, vais ver que vale a pena.
Pouco convicta, mas com a curiosidade a subir-lhe o corpo, olhou em frente e rapidamente os seus olhos transmitiram à sua cabeça o que viam: o Monte Evereste, mais íngreme que nunca. Respirou fundo, e pisou o primeiro degrau. Levava o mundo dos sonhos na mão esquerda, e com a direita pedia ajuda ao corrimão. Cansada, mas com os olhos mais brilhantes que a água translucida que corria na fonte, subiu o último degrau.
Num silêncio harmonioso, sentaram-se os dois no muro do terraço, e, aquecidos pelos raios-de-luz que brotavam do final da tarde, foram, esquecidos do que eram, duas pequenas crianças, que brincavam, encantadas, com blocos feitos de sonho.

16 de agosto de 2008

De que valeram os cinco-e-meio?

Fecha os olhos. Conta até 5. 5 1/2, vá.
Um. Dois. Três. Quatro. Cinco. Cinco-e-meio.
Ali estou eu, a olhar para ti com o meu maior sorriso. Não me vês? Ali! Hei??
Parece que já reparaste em mim. Começas a caminhar na minha direcção, sobre os teus passos calmos e despretensiosos. Esboças um sorriso.
Caminhas. Caminhas. Caminhas. Caminhas.
E eu cada vez mais Longe. Longe. Longe. Longe.
A tua cabeça desiste de manter o corpo acordado.
As pernas não se movem. O coração pára. Os olhos abrem-se.
Vais-me perdendo nas espirais de cores que rodam dentro dos teus olhos.
Sabes que nunca me vais encontrar, mas não choras.

Agora, de olhos bem abertos, vagueias por um conhecimento ainda desconhecido, um espaço assustador, mas que te fascina.



Como foi que deixaste que os teus olhos me perdessem?

15 de julho de 2008

Palavras com cor.

A curiosidade perdeu-me. Não quero saber. A música que dança aos meus ouvidos já não me interessa. Dizem que ando louca. La porque trago o chapéu amarelo a cobrir-me as costas e não a aconchegar-me a minha frágil cabeça. Lá porque a guitarra me enche o coração e não me aperta os dedos. Lá porque do meu olhar crescem flores e não nasce a luz do dia. Lá porque... Dizem que ando louca. Não quero saber. Vou tirar uma fotografia àquela árvore, que sabe que não nasceu numa praia. É louca, decerto.

13 de julho de 2008

Qual é o acorde da tua alma?

Nas linhas da minha mão escrevo o nome da tua alma, e imagino-a, funda e amarga, presa nas minhas muitas paredes. Sopra o primeiro grito mal se apagam as estrelas do céu, e assim fica, até que o vento quente da noite pinte o amarelo da lua. Aí, pára de gritar, escondendo a sua vida secreta e fugitiva. No silêncio cortante da noite, sonha e esquece as linhas da tua mão, onde pousa o nome da minha alma. Sonha e esquece o acorde agudo da minha alma, que por tantas vezes foi tocado pelas linhas marcadas da tua mão.

14 de junho de 2008

A mulher de vermelho.

Todos os dias, sem excepções, chega curtos segundos antes das oito à estação dos comboios. A cobrir-lhe as pernas, traz sempre umas calças vermelhas bem justas, às quais se sobrepõe um comprido e imponente casaco, também ele vermelho.
Acende um cigarro e pede-lhe que a acompanhe até que apareça o comboio, e ele, obediente, não a deixa sozinha. Enquanto passeia a sua cor vermelha pelos azulejos já velhos da plataforma da estação, o cabelo comprido esvoaça-lhe timidamente sobre as costas, fazendo lembrar o pequeno melro na sua primeira aventura pela independência, enquanto o fumo do cigarro se desvanece na cor azul do céu. Passados sete minutos, os seus olhos pretos avistam o comboio no horizonte imaginário. Ela agradece ao companheiro de espera com uma última baforada, e, em modo de despedida, aconchega-o com o salto pontiagudo do sapato.
O comboio, quase vazio, ou não muito cheio, vai atracando suavemente, esperando que ela se aproxime da sua carruagem predilecta. O lugar inanimado do andar de baixo está ainda vazio, à espera que ela o avive com a sua cor vermelha ao longo da extensa viagem.
Não estranha o cheiro vazio que o comboio traz.
Para aqueles lados nunca foi muita gente.

4 de maio de 2008

2 de março de 2008

21 de fevereiro de 2008

Estou sentada num canto do quarto, embrulhada em palavras. Ouço a chuva cair lá fora com tanta força que me arrepia. Vou até à varanda. Encosto o meu nariz à janela sarapintada pela água e ali me deixo ficar, até que o calor da minha respiração embacie os vidros de tal forma que os meus olhos vejam apenas uma densa névoa, e os meus dedos não resistam a rabiscar as coisas mais bizarras e irreais por todo o vidro.
Uma gaivota pousa na chaminé do prédio da frente. Fixo os meus olhos nos seus movimentos. Quase não se move, parece gostar da chuva. Além do cheiro a terra molhada que o trecho aberto da janela deixa entrar, sinto o teu cheiro, vindo não-sei-bem-de-onde. Fecho os olhos para o conseguir sentir melhor.
Já não chove. Os meus olhos continuam fixos na gaivota pousada na chaminé. Por momentos assusto-me. Sob ela já não existe o prédio azul e branco plantado em frente do meu. Existe agora uma casinha rasteira, feita de pedacinhos de tecido. Esboço um suspiro de alívio, quando nos vejo. Eu e tu ou tu e eu, como queiras.
Era a nossa casa. Vivíamos num mundo feito por nós. Tu imaginavas, e eu fazia. Utilizava os mais variados materiais para fazer qualquer coisa. E tu imaginavas qualquer coisa a todo o momento. Mesmo até enquanto dormias.
Fizemos a nossa casa, e tudo o que nela morava: os cortinados, os tapetes, as mantas, o telefone, os talheres e os pratos. Fazíamos a nossa roupa e a cor dos nossos cabelos dependia da temperatura lá fora. Não tínhamos mobília nem espelhos.
Consegui convencer-te a imaginares um gato sem pêlo e que não gostasse de perseguir passarinhos. Imaginaste-o em algodão, pintado de preto, com dois grandes botões azuis no lugar dos olhos e esparguete como fonte de equilíbrio. Eu dei-lhe um nome e tu vida. Depois quis fazer-te uma surpresa: um canário. Fi-lo com papel colorido em origami, como tu me ensinaste. Só não soube dar-lhe vida. Só tu tinhas essa magia, de dar vida às coisas.

Tinhas começado a imaginar personagens, todas elas com características únicas. Imaginavas xilofones que falavam, peixinhos encantados, anões coloridos e bruxas más. Também imaginavas pessoas. Pessoas com pernas demasiado compridas, ou com uma cabeça demasiado grande, com uma mão maior que outra ou quase sem polegar. Imaginavas as pessoas todas sem coração. Eu perguntava-te porquê e tu dizias-me que as pessoas eram más. Eu fazia as tuas personagens tal-e-qual como tu as imaginavas e tu pedias-me que lhes desse nomes. Era uma tarefa fácil: bastava olhar uns segundos para elas e concentrar-me na informação que os meus olhos transmitiam à minha cabeça. E depois, ao tratá-las pelo nome, conseguía perceber porque se chamavam assim e não de outra-forma-qualquer, como acontecia com a maioria dos objectos (porque é que o lápis se chama lápis e não nuvem?). Depois imaginavas histórias, que batias nas teclas de sabão da maquina de escrever, com medo de te esqueceres de algum pormenor importante. Inventavas passados e presentes, cruzavas vidas e histórias. Quando gostavas do resultado, corrias e ias buscar a tua câmara de filmar à prateleira dos objectos de plasticina. E ali mesmo fazias um filme, que me fazia rir, ou chorar, ou ter medo. E eu gostava sempre mais dos que me faziam saborear o sal líquido dos meus olhos.
Já cansados, sentávamo-nos no nosso cantinho aconchegado por mantas e almofadas e punhamo-lO a cantar para nós, no gira-discos de madeira, pintado a vermelho. Eu bebia um chá, tu um café. Não o acabavas sem acender um cigarro. Não me cansava de falar de como te faziam mal, no meu discurso demasiado saudável e assertivo. Davas-me um beijo na testa. Os meus olhos faziam-se o mais zangados que conseguíam (não era fácil). Às vezes corria atrás de ti para to tirar, mas tu escapavas-me sempre.
Pedias-me que te tocasse uma melodia no nosso piano,
feito com os pacotes do açúcar que nos adoçava os dias. Às vezes improvisava, outras, mesmo sem eu querer, os meus dedos rodopiavam numa dança mecânica, produzindo os sons exactos da flauta mágica. Nunca te cansavas de a ouvir, e pedias-me sempre que repetisse. Quando via que abrias demasiado a boca e fechavas demasiado os olhos, os meus dedos despediam-se das leves teclas do piano e os meus pés caminhavam na tua direcção. Enroscávamo-nos um no outro, e eu fazia-te festas no cabelo.
Os vidros estão demasiado embaciados para que eu consiga ver o que se passa lá fora. Desenterro a minha cabeça da janela e limpo o nariz frio com a manga da camisola.
Os meus olhos continuam fixos na gaivota pousada na chaminé.
A chuva continua a cair lá fora.

18 de janeiro de 2008

O Sol de lá.

Sentei-me nas escadas brancas à espera do próximo comboio. Via as pessoas enquanto o Sol me ia aquecendo a pele, e ela pedia mais.
E mais. E mais. E mais.
Entrei no comboio e tive a certeza que hoje a chegada a casa seria bem diferente da dos outros dias: sentia-me muito mais quentinha.



Que saudades do sol a queimar-me a pele.