21 de novembro de 2009

Só por ser Outono vou chamar-te meu amor.

Lembro-me do meu primeiro dejà vu. Um caixote do lixo no Jardim Gulbenkian. Tarde de Outono, em tons amarelos, laranjas e castanhos. Passeava, pela primeira vez, na relva quase seca daquele Jardim. Reparo, inconscientemente, num dos caixotes do lixo. Aquele caixote do lixo. A estranha sensação de familiaridade a crescer dentro de mim. Eu conheço aquele caixote do lixo, pensei. Eu nunca estive aqui, repensei imediatamente. Este dilema a queimar-me a cabeça. Poderia ser qualquer outro caixote do lixo. Os caixotes do lixo não são todos iguais? Claro que não. As pessoas também são todas iguais? Não, mas com as pessoas é diferente. Diferente… é agora diferente! Por mais que pareçam iguais, cada caixote do lixo tem as suas próprias características e peculiaridades. E este é aquele, consigo reconhecer perfeitamente as suas tiras castanhas gastas e compridas. É este o tronco da árvore que o suporta, impedindo que o forte vento de Novembro o tombe a qualquer momento. É este. Tento lembrar-me do que vem a seguir, mas não sou capaz. A única imagem que é projectada nas minhas pálpebras, ao se pousarem delicadamente sobre os olhos, é o caixote do lixo castanho. Tento esquecer aquela estranha sensação. Vou caminhando. Calço os ténis que a avó me deu. Há quantos anos? A mim já não me crescem os pés. E, sem me aperceber, vejo-me abraçada por mais de uma dúzia de pessoas. Uma de cada vez. Abraço. Apenas a palavra. Uma bonita palavra. Vento. Terra. E Senti. Dentro de todos aqueles braços senti. Senti-me mais frágil. De vidro, de papel, de plástico. Frágil. Só particulas, não o todo. Moléculas? Átomos? Senti-me mais velha. Senti-me mais criança. Mais velha e mais criança ao mesmo tempo. Diferentes cheiros. O cheiro de todos. O cheiro de cada um. O teu cheiro, meu amor. Nas minhas mãos, no meu cabelo, no meu vestido, (no meu coração?). O teu cheiro em mim, meu amor. E eu que fechei os olhos. Bolas. Perdi o céu dos dias sem nuvens dos teus. Porquê? Parem, idiotas. Parem! Não está frio para isso. Nem calor. Também não está calor para isso. Parem! O suor dos meus olhos a escorrer-me pelas faces rosadas. Vou contar-lhe um segredo. Um segredo verdadeiramente estúpido. Não pode fazer troça de mim, prometa. Tem que prometer. Tenho medo de cães. Tenho muito medo de cães. Já sabia que ia fazer troça de mim. Sim, eu sei que os cães são queridos, mas eu tenho medo deles. Tenho medo de cães! Ainda bem que não se importa. Vou-lhe contar outro segredo. Posso? As pessoas que gostam de cães despertam em mim uma certa sensação de enjoo. Olhe, apetece-me vomitar. Não que não goste de si. A senhora não tem culpa. A verdade é que tenho muita vontade de vomitar. Desculpe. Até amanhã, ou qualquer dia. Até qualquer dia. Gatos? Sim. Os gatos sim. Sim, os gatos? Sim. Uma camada fina de céu ia pousando o Jardim. Uma corda, uma vassoura e uma folha de jornal. O frio. Já era tempo. De tempo frio. Já era tempo de tempo frio. A corda que me protegia o pescoço. Uma corda de lã. Quente, bem quente. A vassoura, uma almofada. Deve doer. Vassoura? Almofada? Varre o chão. Não, não o varras. A relva sabe melhor. Bem melhor. E o cobertor? Folha de jornal. Uma fina folha de jornal. Porque não?
Porque não?

13 de junho de 2009

The movie on your eyelids.



ouvir com atenção, por favor.

7 de março de 2009

Bom dia, bairro.

Subia as escadas e logo sentia o cheiro das castanhas a queimar-me a pele. O sol, que acabava de nascer, entrava-me pelos ouvidos numa bonita melodia e, enquanto caminhava, o som apressado dos passos das gentes transformava-se, acreditem, num aroma delicioso.
Chegava à sexta rua, depois do arco, olhava para cima abismada e dizia bem alto "Bom dia, bairro!". Parecia contraditório dizer bom dia ao bairro da noite, mas não é mentira que também vive de dia, e se vive!
O bairro não é sujo, como muitos o vêm. Tem sempre quem tome conta dele e o lave com o cuidado que merece. Cada vez que ia ter com a dona I., mesmo enquanto chovia, lá estavam eles, os senhores amarelos, a lavar cada cantinho do bairro. Cuidavam dele como se lhes pertencesse e no coração traziam guardado cada momento que nele viveram.
Que bom que era poder entrar em qualquer porta, e, ao encontrar gentes antigas, pedir, sem qualquer tipo de explicações, "conte-me a sua história". Como eu gostava de ler os poemas do senhor J., e de ouvir as divagações do senhor A. acerca da vida dos velhos. Que bem que sabia rir com as brincadeiras da dona M., e arrancar uma gargalhada ao velho R., que já não podia ver a beleza do bairro.
O bairro não tem só velhos, também tem crianças, para lhe darem vida. Jogavam à bola de um varandim para outro, e escondiam-se dos pais nas esquinas das ruelas.
Por vezes, quando regressava a casa, encontrava, perto do papelão, o senhor C., que deitava para a reciclagem os livros e jornais do dia. Pedia-lhe sempre que antes de os deitar fora, me lesse as palavras mais bonitas que encontrara, para que pudesse ir para casa com o sabor do bairro nos ouvidos.
Antes de me encontrar com ele, para bebermos um chá, passeava-me pelas ruas íngremes e altas do bairro e começava a ouvir cá dentro, num sussurro "o bairro do amor é feito a lápis de cor", e na minha cabeça, toda aquela beleza se transformava num emaranhado de rabiscos coloridos.
Os dias acabavam com festas no cabelo, e a frase que me enchia o coração: "É bonito ver como as pequenas coisas te fazem tão feliz!".

7 de janeiro de 2009

O peso das palavras.

Não escrevi antes com medo que as palavras se tornassem mais fortes que eu, e se mostrassem como eu não queria que fossem vistas.
Tenho visto muitos filmes, ultimamente. Filmes que tinha para aqui gravados, mas aos quais nunca dei grande importância. Antes preferia entreter-me lá fora, com a natureza. Observava os movimentos das nuvens e as formas que assumiam, deliciava-me com o som das folhas ao tocarem o chão, com o cheiro das flores coloridas do meu jardim, ou com o toque das gotas frias da chuva nas minhas mãos. Passados tantos anos sinto que já aprendi toda a natureza, já a conheço melhor que me conheço a mim. Tenho o tempo que me resta para aprender sobre as pessoas, sobre relações, sobre a vida. Coisas complicadas essas, se tudo o que vivi não chegou para as compreender. Sento-me no pequeno sofá da sala, coberto pela manta que a minha mãe me fez, já há tantos anos. Encho os olhos com as imagens bonitas dos filmes, as mãos com a textura rugosa das fotografias, o nariz com o cheiro a mofo dos livros que me fizeram a vida, e os ouvidos com aquelas músicas capazes de me transportar para os mais mágicos lugares, que tristemente me convenço nunca ter chegado a conhecer, enquanto saboreio uma chávena de chá. Vejo e revejo os filmes que preenchem a pouca mobília da sala. É nestes momentos que agradeço a minha fraca memória, que me deixa ver um filme duas vezes na mesma semana, sem sequer me recordar de pequenos flashes.
Sempre tive problemas de memória. Todos os meus amigos troçavam de mim. Lembro-me da minha médica de família, que, logo no primeiro dia em que me conheceu, ao se aperceber da minha falta de memória, me diagnosticou de imediato uma depressão, justificando-se com o facto de que apenas as pessoas infelizes e insatisfeitas se esquecem de tudo e mais alguma coisa. Sem qualquer margem para explicações da minha parte, obrigou-me a tomar uns comprimidos enormes ao pequeno-almoço, na época de exames. Na verdade, as décimas a mais que atingi durante aqueles três meses em que vivi sobre o efeito de drogas, ainda que naturais, não me tornaram uma melhor fisioterapeuta. Hoje sei que a minha fraca memória a longo prazo não poderia nunca ter resultado de uma depressão, a não ser que tenha vivido em depressão permanente toda a minha vida, o que me parece pouco provável. Os problemas de memória acompanharam-me ao longo de toda a minha vida, e não apenas nos atabalhoados anos de faculdade. Lembro-me dos meus utentes, que, conhecendo já a minha baralhada memória, se riam às gargalhadas quando passados alguns meses de recuperação me iam visitar, como forma de agradecimento, e eu nunca me lembrava do problema que os levara até mim. Confundia luxações com fracturas, membros superiores com ancas, meses com semanas. Uma verdadeira baralhação. Tinha a sorte de nunca me esquecer nem das caras, nem dos nomes dos utentes, e, dessa forma, não perder o meu emprego.
Parece que o compartimento da minha memória que guarda pessoas sempre se manteve em óptimas condições. Recordo todos os rostos que cruzaram os meus olhos, mesmo que apenas por breves segundos.
Lembro-me de todas as personagens das histórias de amor que vivi, e até mesmo das que não cheguei a viver. Nunca recuperei completamente de cada relação acabada, e mesmo passados alguns anos e já com outra pessoa, continuava a não me esquecer das relações passadas. Recordava pequenos pormenores, e tinha saudades. Ainda hoje as tenho. Tenho sempre saudades do cruzar embaraçoso de olhares, das festas nos cabelos e nas mãos, das cócegas nos pés, das cavalitas e dos abraços. Hoje sei porque nenhuma dessas relações teve um final feliz. Nasci sem o dom do amor. Nunca soube lidar com o dia-a-dia de uma relação, a ideia de estar com a mesma pessoa todos os dias sufoca-me. Sempre me fartei das pessoas com uma facilidade enorme. Lembro-me de inventar desculpas para não sair com os meus amigos simplesmente por me sentir farta deles. Nunca me entreguei como estavam à espera que me entregasse, acabando sempre por me tornar num motivo de desilusão. Só agora compreendo como era egoísta. Naquela altura não compreendia, e todo o amor cá de dentro se transformava em ódio, acabando por se infiltrar na minha cabeça como um estranho sentimento.
Como não tive sorte no amor, a ideia de um cozinheiro perfeito que me preparasse todas as refeições do dia foi-se desmoronando na minha cabeça, e tive, inevitavelmente, que aprender a cozinhar. Ao início foi doloroso. Deixei queimar uns quantos empadões, as sopas saíam muito piores do que as das cantinas das escolas, e o arroz mais desfeito que as papas para bebés. Com a prática as coisas foram melhorando, e hoje posso dizer que sou quase tão boa cozinheira como era a minha mãe. Lembro-me de me dizerem que nunca ia ser uma mulher. E, na verdade, houve uma parte de mim que continuou sempre criança, não deixando nunca que me tratassem como uma mulher normal. Ainda hoje me dizem que pareço uma criança. Ainda hoje não percebo porquê. Será pelo constante mau estado das minhas pernas, sempre inundadas de nódoas-negras? Ou pelos meus sapatos, que nunca tiveram o mínimo salto? Talvez seja pelas minhas gargalhadas barulhentas, que põem todos os olhos em mim e todas as bocas com um sorriso; ou pelos meus espirros, que pedem um ice-tea, ou um atum, dependendo do meu estado de humor; ou até pela forma estranha como me sento, sempre toda torcida.
Tantos anos passaram, e agora, aqui sentada, sinto-me como se estivesse há muito tempo enrolada numa enorme onda de água. Vou-me lembrando do que fui e do que me falta ser, e os vasos do coração entrelaçam-se, formando um grande nó. A minha veia na testa à Julia Roberts torna-se mais saliente, o meu dente morto mais amarelo, e as duas proeminências do meu nariz mais afiadas.
Lembro-me, inesperadamente, de como todos falavam da beleza e da sinceridade do meu sorriso, que eu nunca cheguei a compreender. O nó no coração vai alargando, a veia da testa deixa de ser visível, o meu dente morto embranquece, e as proeminências do nariz desaparecem.
E cada vez que estas transformações se dão, sinto os ossos mais fortes e as articulações menos perras. A minha respiração torna-se menos ofegante, e sinto falta do ar puro. Então saio de casa, e regresso à natureza.Volto a aprender tudo o que dela já sei, sem nunca me cansar.