28 de julho de 2007

História de gente antiga.

Acabei de lamber uma gota de cerveja do meu dedo mindinho. Tenho que estar inspirada. Hoje não há desculpas.

Lá está ele, sentado no mesmo banco do jardim, debruçado sobre as pernas, como se algo importante se passasse debaixo dos seus pés. A bengala que segura com a mão esquerda suporta-o, evitando que a falta de equilíbrio que a idade traz vença, e que o pobre velho caía redondo na relva que tanto admira.
Lá estou eu, sentada naquela relva, observando-o por entre dois ramos da árvore grande do jardim. Observo-o há já alguns dias, carregada de falta-de-coragem para me aproximar.
Levanto-me, e inspiro o mais fundo que consigo. A coragem não me vai faltar desta vez. Desta vez não.
E vou torcendo para que o corpo não se vire contra a cabeça, ou a cabeça contra o corpo, e iniciem ali uma guerra aberta, na qual ganharia aquele que quisesse voltar para trás e sentar-se novamente naquela relva. Vou torcendo para que as pernas não tremam, fazendo com que todo o mecanismo inconsciente que a marcha suporta se transforme num conjunto de movimentos planeados, visualizados mentalmente e só depois realizados. Vou torcendo para que o coração não bata demasiado depressa, para não me obrigar a senti-lo na barriga, na testa, nos braços.
À medida que me aproximo penso na melhor forma de o arrancar daquele estado de concentração, que só ele percebe. Penso numa forma violenta: um grito. Penso melhor. Acho o grito demasiado violento. Penso numa tosse seca do género (tentei encontrar letras em forma de onomatopeia que a expressassem, não consegui. nunca me dei bem com a tradução de sons estranhos para letras.). Mas depois caio em mim e penso que o som dos meus passos bastará para captar a atenção do pobre velho.
Engano-me. Nem com os meus pequenos pés já dentro do seu campo de visão ele ergue a cabeça.
A minha mão, num movimento demasiado rápido e involuntário, pousa sobre o seu ombro direito, como que a gritar freneticamente 'Hei! Eu estou aqui!!'. É neste momento que o pobre homem deixa de olhar o chão que pisa e fixa os seus grandes olhos azuis nos meus pequenos olhos castanhos, que ficam ainda mais pequenos por todo o embaraço sentido.
Digo-lhe olá. Ele cospe também um seco olá, sem fazer qualquer tipo de pergunta acerca da minha origem. Sento-me na relva, em frente ao seu banco de estimação. E, passados alguns segundos de um silêncio cortante, pergunto-lhe se me pode contar a sua história. E ele conta.
O sol põe-se, e ele ainda conta a sua história. As primeiras estrelas nascem no céu liso daquela noite quente, e ele ainda conta a sua história. Todas as luzes do jardim se acendem, e ele ainda conta a sua história. Os primeiros raios de sol aparecem no horizonte, quando a boca do velho prenuncia palavras que me são demasiado conhecidas 'E aqui estou, sentado neste banco do jardim, debruçado sobre as minhas pernas, num estado de concentração que só eu percebo'.
Toda aquela noite sentada na relva do jardim, a ouvir aquele velho que há tanto tempo observo, me parece demasiado mágica para acabar só assim. Com sorte, trago dentro da mochila pregada de botões, a minha velha máquina de rolo. E assim fica registado este momento. Mas, para mim, não é o suficiente. Dou um beijo de gratidão na testa enrugada do velho. Recebo um sorriso. Parto numa correria incansável à procura da máquina de escrever.
Lembro-me da casa de fim-de-semana da minha tia. Lembro-me da minha infância passada naquele sótão, a brincar com borrachas que eram escovas-de-dentes, que eram afias, que eram dados. Lembro-me da máquina-de-escrever, que combinava tão bem com a secretária de pinho sobre a qual pousava. A minha corrida torna-se ainda mais rápida, avivada pelas bonitas memórias.
Avisto finalmente a casa de pedra da minha infância. Salto o portão. Ninguém em casa. Não me fico. Pego no primeiro objecto com aparência perigosa que os meus pequenos olhos avistam e espeto-o na janela de vidro, que dá para a cozinha. Subo as escadas de ferro em caracol o mais rápido que consigo. Ao ver a porta pequena dentro da casa de banho lembro-me do medo que ela me provocava. Faziam-me acreditar que era dentro daquela porta que moravam os anões da branca de neve. E eu acreditava. O medo apaga-se, e a memória também. Olho para o meu lado esquerdo. Era ali. Entro, e ah! lá estava ela, sobre a mesma secretária de pinho que a minha memória desenhara.
Sento-me na cadeira, também de pinho, que completa a secretária. O papel já está posto. Tem um aspecto velho e amarelo. Não me importo. Sento-me e escrevo. O sol volta-se a pôr, e eu ainda escrevo. As primeiras estrelas voltam a nascer, e eu ainda escrevo. Todas as luzes lá fora se acendem, e eu ainda escrevo. Os primeiros raios de sol voltam a aparecer no horizonte quando os meus dedos, já cansados, tocam em letras que me são demasiado conhecidas.
Guardo todas as folhas de papel velho e amarelo na mochila. Olho para o colchão encostado à parede. Parece-me acolhedor. Derrubo-o e deito-me mesmo assim.

As pernas e os braços não mexem mais, de tão satisfeitos que estão.
A cabeça não pensa mais, de tão satisfeita que está.
O coração, esse, continua a bater demasiado depressa.


Ouvindo: Radiohead- Idioteque.

10 de julho de 2007

Três.

E pensar como mudei. Como mudámos. Como, tu próprio, mudaste.
Três anos é uma eternidade, para alguns. E um abrir- e -fechar- de- olhos, para outros.
Muitas vezes passo os olhos pelas tuas letras meio verdes, meio azuis. E fecho-os logo a seguir. Fico minutos com eles fechados, a imaginar-me de novo naquelas histórias, naqueles momentos. E custa, mas sabe tão bem. Sinto que cá dentro o coração se arrasta de um lado para o outro, entre o passado e o presente.
O passado e o presente não se entendem, discutem e maltratam-se tantas vezes. Mas o presente ganha sempre. E o coração pára sempre no meio do peito, ligeiramente inclinado para o lado esquerdo.


Três anos.

Parabéns, uma vez mais.


Ouvindo: Jorge Palma- Na terra dos sonhos.