23 de agosto de 2010

To build a home

A minha mente desperta, mas os olhos mantêm-se fechados. Sinto a alma leve, e o coração quente. O meu corpo, demasiado cansado para se mover, tenta adivinhar a posição de cada um dos seus membros, de forma a deduzir a orientação das paredes e o lugar de cada móvel, e assim reconstruir a morada que o abriga.
Tarefa difícil, esta, para um corpo tão cansado. Frágil, pede ajuda ao cantinho da memória que guarda lugares e sensações, pede-lhe que lhe ofereça recordações de todos os quartos por que já passou. E vai-se rendendo à facilidade com que as imagens vão sendo projectadas sob as pálpebras, tal e qual um filme, e com que as sensações vão atravessando as camadas mais profundas da pele. Todo este trabalho, estando apenas a um movimento da realidade.
Os olhos não se abrem, mas, mesmo assim, vêem tudo. À direita, pendurada no centro da parede, a casa de madeira das borrachas que são escovas e pastas de dentes, dados, lápis e afias. À esquerda, ao fundo da cama, a máquina de escrever que ainda guarda as histórias da noite anterior. O chão, cosido de verde-esperança, tal como o jardim lá fora. E as quatro paredes azuis, guardando, cada uma, um segredo diferente. Os olhos vão acreditando nesta realidade, mas o nariz, desconfiado, pede pela confirmação. E, ao sentir o ar respirado a aconchegar as suas paredes, percebe que só se enganou a si próprio. O cheiro que o invadiu é-lhe demasiado íntimo e vivo. Falta-lhe o cheiro do vazio, do abandono. O cheiro a mofo.
E logo se desvanecem as paredes azuis e o chão verde, a casa das borrachas e a máquina de escrever. É pintada, sobre a tela dos meus olhos, outra casa para o meu sono. Cores quentes aconchegam-me a pele e quase me queimam os olhos. O coração, inconscientemente, começa a bater mais rápido e, sem o corpo se aperceber, vão-se escapando alguns batimentos. Do lado direito, começam a ser pintados, sobre as janelas, os cortinados vermelhos e, debaixo de mim, os lençóis azuis. Não estou sozinha. Outro corpo frágil e cansado repousa ao lado do meu. É um corpo vazio. Que está, mas não está. Há muito que o seu coração fugiu do seu corpo. Há muito que não está, mesmo estando. O meu braço esquerdo ganha vida, alimentado pela raiva que circula por todas as minhas veias e as dilata. E percorre a cama, em busca desse corpo ausente, mas não o encontra.
Os meus olhos voltaram a enganar o meu corpo. Estes, já quase sem força para projectar um novo quarto, pensam em desistir, mas o comodismo vence, uma vez mais. Vêem-se pássaros de todas as cores feitos em origami a voar pelas quatro paredes do quarto. Na parede do fundo, o suporte de fotografias trazido do México, que dá casa a algumas das minhas histórias. Mais em baixo, a mochila Monte Campo azul-escura, com um botão no lugar da sua identidade. O chão está coberto por livros e folhas escrevinhadas, e do lado esquerdo, a cadeira de baloiço, que serve de suporte à roupa do dia seguinte: uma t-shirt amarela, all-stars azul esverdeados e calças de ganga já meio gastas. O nariz vermelho repousa ao lado da t-shirt, à espera de tomar o seu lugar entre os meus pequenos olhos castanhos. Na mesa de cabeceira, está o meu telemóvel, que tem como capa um recorte de revista do burro do Shrek e que me acorda todas as manhãs com luzes coloridas e um toque polifónico suficientemente irritante. Com medo que o toque termine com a calma do meu corpo, o meu braço esquerdo, já habituado ao movimento, guia a sua mão até à mesa-de-cabeceira em busca do botão capaz de atrasar, indefinidamente, o meu acordar. A mão esquerda embate, imediatamente, num objecto que se assemelha, em tudo, a um telemóvel. Estranhamente, nenhum dos dedos, ao percorrer todas as arestas e vértices do mesmo, encontra o botão mágico. Nem esse, nem nenhum. O telemóvel não tem botões. Assustado, todo o meu corpo decide despertar, e os meus olhos, demasiado preguiçosos, afastam finalmente as suas pálpebras quentes, como o braço direito afasta os cobertores, deixando a nu todo o corpo.
As paredes estão brancas, os pássaros cansaram-se de voar e levaram com eles as minhas histórias. No lugar da mochila, uma mala castanha não muito grande. O chão está nu. Os livros arrumaram-se, os papéis fizeram-se pássaros e fugiram. A cadeira continua a balançar, mas sem roupa. Abro o roupeiro, mas já não vejo t-shirts nem calças de ganga. As t-shirts são agora blusas e as calças transformaram-se em saias e em vestidos de todas as cores e feitios. Sapatos e sandálias no lugar dos ténis. O nariz vermelho já nem me serve. O telemóvel sem botões começa a despertar. Já não toca às cores, mas ouve-se 'this is a promise with a catch'. Olho para a cama, e não encontro outro corpo. Ouço a música que ainda toca. Acredito na promessa. O coração acalma-se e os meus olhos sorriem. Mas não resisto, e mesmo antes de tomar o pequeno- almoço, trinco um quadradinho de chocolate da tablete esquecida no canto da mesa-de-cabeceira. E mais um, e outro. E fico satisfeita, mas nunca o suficiente. E este é o meu ópio, sempre será.
Enquanto sinto a garganta a arder do doce exagerado do chocolate, os meus olhos viajam uma última vez pelo quarto em que acordaram. Um esqueleto com todos os ossos dos nossos corpos substitui a secretária cheia de livros.
E lembro-me que já sou fisioterapeuta. E o orgulho cresce. E cresce. E muito!
Mas o medo também.

A vida está prestes a começar, como há quem diga.

E ouço cá dentro novamente: 'Finalmente és livre. Podes ser quem quiseres, fazer o que bem te apetecer. Este é O momento e as decisões são só tuas. E se for para arriscar, fá-lo agora, que depois vai ser tarde.'.
E não é fácil. Não é fácil decidir-se quem se quer ser. E piora quando, a cada dia que passa, descubro outra forma para ser, e outra, e outra. Infinitas formas para se ser. Mas apesar das dúvidas e do medo, eu sei bem quem quero ser, e sei o que quero fazer. E o comodismo não me vai matar nunca.
E prometo, vou fazer de tudo para encontrar um nariz vermelho que me sirva. E mesmo quando não existirem mais narizes vermelhos, vou encontrar forma de criar o meu próprio nariz vermelho.

Porque eu não quero, nunca, ser sem nariz vermelho.