7 de janeiro de 2009

O peso das palavras.

Não escrevi antes com medo que as palavras se tornassem mais fortes que eu, e se mostrassem como eu não queria que fossem vistas.
Tenho visto muitos filmes, ultimamente. Filmes que tinha para aqui gravados, mas aos quais nunca dei grande importância. Antes preferia entreter-me lá fora, com a natureza. Observava os movimentos das nuvens e as formas que assumiam, deliciava-me com o som das folhas ao tocarem o chão, com o cheiro das flores coloridas do meu jardim, ou com o toque das gotas frias da chuva nas minhas mãos. Passados tantos anos sinto que já aprendi toda a natureza, já a conheço melhor que me conheço a mim. Tenho o tempo que me resta para aprender sobre as pessoas, sobre relações, sobre a vida. Coisas complicadas essas, se tudo o que vivi não chegou para as compreender. Sento-me no pequeno sofá da sala, coberto pela manta que a minha mãe me fez, já há tantos anos. Encho os olhos com as imagens bonitas dos filmes, as mãos com a textura rugosa das fotografias, o nariz com o cheiro a mofo dos livros que me fizeram a vida, e os ouvidos com aquelas músicas capazes de me transportar para os mais mágicos lugares, que tristemente me convenço nunca ter chegado a conhecer, enquanto saboreio uma chávena de chá. Vejo e revejo os filmes que preenchem a pouca mobília da sala. É nestes momentos que agradeço a minha fraca memória, que me deixa ver um filme duas vezes na mesma semana, sem sequer me recordar de pequenos flashes.
Sempre tive problemas de memória. Todos os meus amigos troçavam de mim. Lembro-me da minha médica de família, que, logo no primeiro dia em que me conheceu, ao se aperceber da minha falta de memória, me diagnosticou de imediato uma depressão, justificando-se com o facto de que apenas as pessoas infelizes e insatisfeitas se esquecem de tudo e mais alguma coisa. Sem qualquer margem para explicações da minha parte, obrigou-me a tomar uns comprimidos enormes ao pequeno-almoço, na época de exames. Na verdade, as décimas a mais que atingi durante aqueles três meses em que vivi sobre o efeito de drogas, ainda que naturais, não me tornaram uma melhor fisioterapeuta. Hoje sei que a minha fraca memória a longo prazo não poderia nunca ter resultado de uma depressão, a não ser que tenha vivido em depressão permanente toda a minha vida, o que me parece pouco provável. Os problemas de memória acompanharam-me ao longo de toda a minha vida, e não apenas nos atabalhoados anos de faculdade. Lembro-me dos meus utentes, que, conhecendo já a minha baralhada memória, se riam às gargalhadas quando passados alguns meses de recuperação me iam visitar, como forma de agradecimento, e eu nunca me lembrava do problema que os levara até mim. Confundia luxações com fracturas, membros superiores com ancas, meses com semanas. Uma verdadeira baralhação. Tinha a sorte de nunca me esquecer nem das caras, nem dos nomes dos utentes, e, dessa forma, não perder o meu emprego.
Parece que o compartimento da minha memória que guarda pessoas sempre se manteve em óptimas condições. Recordo todos os rostos que cruzaram os meus olhos, mesmo que apenas por breves segundos.
Lembro-me de todas as personagens das histórias de amor que vivi, e até mesmo das que não cheguei a viver. Nunca recuperei completamente de cada relação acabada, e mesmo passados alguns anos e já com outra pessoa, continuava a não me esquecer das relações passadas. Recordava pequenos pormenores, e tinha saudades. Ainda hoje as tenho. Tenho sempre saudades do cruzar embaraçoso de olhares, das festas nos cabelos e nas mãos, das cócegas nos pés, das cavalitas e dos abraços. Hoje sei porque nenhuma dessas relações teve um final feliz. Nasci sem o dom do amor. Nunca soube lidar com o dia-a-dia de uma relação, a ideia de estar com a mesma pessoa todos os dias sufoca-me. Sempre me fartei das pessoas com uma facilidade enorme. Lembro-me de inventar desculpas para não sair com os meus amigos simplesmente por me sentir farta deles. Nunca me entreguei como estavam à espera que me entregasse, acabando sempre por me tornar num motivo de desilusão. Só agora compreendo como era egoísta. Naquela altura não compreendia, e todo o amor cá de dentro se transformava em ódio, acabando por se infiltrar na minha cabeça como um estranho sentimento.
Como não tive sorte no amor, a ideia de um cozinheiro perfeito que me preparasse todas as refeições do dia foi-se desmoronando na minha cabeça, e tive, inevitavelmente, que aprender a cozinhar. Ao início foi doloroso. Deixei queimar uns quantos empadões, as sopas saíam muito piores do que as das cantinas das escolas, e o arroz mais desfeito que as papas para bebés. Com a prática as coisas foram melhorando, e hoje posso dizer que sou quase tão boa cozinheira como era a minha mãe. Lembro-me de me dizerem que nunca ia ser uma mulher. E, na verdade, houve uma parte de mim que continuou sempre criança, não deixando nunca que me tratassem como uma mulher normal. Ainda hoje me dizem que pareço uma criança. Ainda hoje não percebo porquê. Será pelo constante mau estado das minhas pernas, sempre inundadas de nódoas-negras? Ou pelos meus sapatos, que nunca tiveram o mínimo salto? Talvez seja pelas minhas gargalhadas barulhentas, que põem todos os olhos em mim e todas as bocas com um sorriso; ou pelos meus espirros, que pedem um ice-tea, ou um atum, dependendo do meu estado de humor; ou até pela forma estranha como me sento, sempre toda torcida.
Tantos anos passaram, e agora, aqui sentada, sinto-me como se estivesse há muito tempo enrolada numa enorme onda de água. Vou-me lembrando do que fui e do que me falta ser, e os vasos do coração entrelaçam-se, formando um grande nó. A minha veia na testa à Julia Roberts torna-se mais saliente, o meu dente morto mais amarelo, e as duas proeminências do meu nariz mais afiadas.
Lembro-me, inesperadamente, de como todos falavam da beleza e da sinceridade do meu sorriso, que eu nunca cheguei a compreender. O nó no coração vai alargando, a veia da testa deixa de ser visível, o meu dente morto embranquece, e as proeminências do nariz desaparecem.
E cada vez que estas transformações se dão, sinto os ossos mais fortes e as articulações menos perras. A minha respiração torna-se menos ofegante, e sinto falta do ar puro. Então saio de casa, e regresso à natureza.Volto a aprender tudo o que dela já sei, sem nunca me cansar.

2 comentários:

telma disse...

adorei, adorei ler este texto (:
nem sei o que dizer, mesmo.

Rita disse...

talvez te possas sentir feliz; ter uma terra do nunca particular não é para todos.


(já te disse que ficas muito bonita ao pé dos teus pequeninos da catequese? ficas.

e obrigada pelos parabéns. *)