8 de agosto de 2006

Ía eu.

Ía eu para casa da avó, fazer-lhe o almoço. Um pouco atrasada, é verdade. Mas que queres? Entretenho-me sempre um bocadinho lá nos baloiços do pátio, às gargalhadas com a Matilde. Depois, chego a casa da avó a transbordar de ideias para novas receitas; a pensar em novas formas de dobrar os guardanapos. Mas é sempre a mesma coisa. Sempre a mesma coisa. Sempre. A avó nunca tem fome. Nunca tem interesse em saber das minhas ideias, completamente- não- pensáveis. Não liga às minhas tentativas frustradas de novos sabores de batidos, não liga às novas formas de enfeitar os bolos de chocolate. Mete uns grãos de arroz à boca, bebe um golo de água e diz não ter mais fome. Depois disto, a que chama almoço, descalça as pantufas já gastas pelo tempo e enfia-se nos lençóis. Mas não dorme. Observa a rua lá fora: as folhas da árvore grande, que dançam ao som do vento; os meninos lá longe, que jogam à macaca; os velhinhos, que caiem na triste solidão da idade. Observa o que vai para lá da janela como se observasse um filme na televisão da sala. E é sempre assim.
Ía eu para casa da avó, fazer-lhe o almoço. Um pouco atrasada, é verdade. Ía de mochila a-tira-colo e de casaco atado à cintura, como agora se usa, quando oiço: 'hei! menina!'. Olho para trás desconfiada, estranhando que me estivessem a chamar. Mas estavam. Era uma bonita menina que segurava o meu casaco. Caíu, e eu não dei conta. Sou assim, meio distraída.. Agradeci-lhe e ela continuou o seu caminho. Era bonita. Muito. Mas tinha medo. Vi-o nos seus olhos. Talvez fosse por não ter ideias para o almoço da avó. Talvez fosse do que podia acontecer a avó. Ou talvez fosse apenas do mundo, esta coisa incerta, que ninguém percebe.


E saudades. *



Ouvindo: Muse- Sing for absolution.


2 comentários:

Marta disse...

Somos sempre os mesmos.Sempre os mesmo pratos das flores já gastas.Sempre os mesmo garfos com restos ressequidos do jantar do dia anterior.Sempre a mesma forma de comer.Sempre as mesmas comidas.Sempre o mesmo medo de não saber se a comida vai ser boa ou má, se tem muito ou pouco sal, se está fria ou a escaldar;e depois as velhas desculpas "Olhem a sopa não tem muito sal, mas quem quiser mais, está ali" e alguém responde, "Está boa, é boa para quem tem a tensão alta" , sabendo perfeitamente que a sopa sem sal não presta... Mas ainda bem que assim é. Quanto a avós, pouco te posso falar, tive duas: uma morreu ainda antes de eu me conseguir lembrar dela (Diz-me a minha mãe:"Comeste muita sopa com a avó Helena."); a outra morreu antes de eu tentar compreender as razões que fizeram dela uma mulher fria (e agora vivo com essas razões todos os dias e por isso amo-a mais agora do que dantes). Mas garanto-te, o esforço de tentares seres original para agradar a tua avó (ou a tua mãe, ou os teus amigos, ou as tuas gentes (ou a ti própria)) vale mais que tudo. E continua a fazer-lhes comida, a buscar as pantufas, a levar-lhes para a cama, a ouvir-lhes as estórias/histórias (mesmo que não estejas verdadeiramente a ouvir), continua a ir lá a casa deles, a amar-lhes tanto que até tens medo de errar, a seres assim como tu és e toda a gente gosta. Quando for velha e rabujenta, quero muito que me façam comida e que eu possa dar-me ao luxo de dizer "Não quero mais, desculpa, mas obrigada, estava tudo muito bom, agora vou descansar um bocadinho enquanto o sol está muito forte.É que não se pode estar na rua a esta hora!" O esforço que parece não ser recompensado, acaba por ser, acredita que sim.

Super Mulher

P.S.:Lembro-me da parábola do filho pródigo.Afinal, não é desprezo, não é indiferença, é o amor adquirido e que não precisa de ser provado, porque existe, porque está lá, à vista de quem quer ver.

Anónimo disse...

este post estah discretamente linduh, cheio de pequenos pormenores que nos despresams e que deliniam o rude contraste da vida dos personagens.

parabens,esta mesmo muito lindo de ser ler.